Há nas profundezas imundas dos esgotos
da cidade, uma corja incomparável de ratos. Sobrevivendo entre a merda e os
dejetos, se escondem da luz do sol, e do contato humano, têm em seus genes a marca profunda de sua espécie: selvagens, de natureza covarde, e oportunista, hábeis nas
tarefas mais baixas do reino animal, e por isso mesmo, a seleção natural os
fez, talvez, a mais bem sucedida espécie de mamíferos da natureza.
Ontem, uma dessas criaturas surgiu na
minha cozinha. Foi um susto enorme! Não soube o que fazer e fiquei estático,
atônito.... De que ralo teria saído? Como conseguiu chegar até ali? Me
perguntei assustado. Eu nunca tinha presenciado, até o momento, contato tão
próximo com aquela criatura obscura. Mas já não importava; plantado no chão que
era meu, o animal tinha me desafiado. Em questão de segundos fui obrigado a
estar preparado para ele, e ele para mim. Não fizemos nada. Apenas nos
encaramos, e assustados, calculávamos o momento do exato enagage. Mas não
reagi, E então, passados os segundos do terror inicial, comecei
a fita-lo como num transe...
Me ocorreu que talvez, ambos não
sejamos para ser vistos um pelo outro, como já me disse Clarice. Seu corpo
comprido e espichado de rato era muito hábil , estava acostumado a se esgueirar
pelos canos, passar pelas fretas para devorar com pressa toda a migalha que
conseguir. Essa é sua natureza. E essa natureza me aterrorizava, já que dadas as criaturas de Deus, eu à sua semelhança tenho a natureza dos anjos, e me habituei demais a desfrutar do que é meu por mérito.
Mas afinal, o que posso eu contra um
rato? O que há em MINHA natureza, para querer a morte de um rato? Sei que
ele é mais rápido do que eu, e se tentasse golpeá-lo, ele fugiria com
facilidade por algum vão, onde eu não o alcançaria mais, e se por ventura
conseguisse o atingir, eu, ainda assim, nada poderia contra a sua linhagem, ou contra os
caminhos sujos que o trouxeram à minha cozinha, pois minha cozinha já estava enfestada; uma vez visitada e essas pragas deixam seu rastro às outras que se aproveitam do descuido
dos homens para se alimentar. O rato tem a sua estirpe, e isso me punha em desvantagem.
Então concluí que talvez
não pudesse livrar a cozinha dos ratos. Mas poderia um rato me fragilizar?
Poderia eu me sentir afoito pela presença de uma criatura tão baixa?
Poderia ter razão o meu terror? Então me lembrei de quando a faxineira
nos alertou: “encontrei cocô no canto da dispensa, é melhor colocar veneno na casa inteira” Aquilo não me gerou nenhum alarme, e ignorei o fato. Se estivesse
atento poderia ter notado o odor que ele deixava no ambiente (é muito peculiar o cheiro de um rato) poderia ter
notado suas fezes, poderia ser fácil evitar a infestação. Mas naquele dia não dei importância ao fato, e agora, um rato se estampava, comprido e delgado em meu chão de azulejos quadrados. E agora ele iria me fragilizar?
Decidi que não me sentiria assim, e
meu olhar passou a ser de curiosidade; quanto mais o fitava, mais me
interessava por ele, e comecei a pensar como o rato se safaria da situação.
Ele, cujo lugar são os esgotos cheios de merda, ele sabia que estava no meu
ambiente, na minha cozinha. Naturalmente, deixei minha postura combativa,
naturalmente ele notou, e antes que eu pudesse piscar os olhos, ele escalou
habilmente três lances de prateleiras e saltou pela janela. Se foi...
Amanhã ele estará de volta, pensei. E eu não serei homem para
travar batalhas com ratos. Amanhã desocupo a cozinha, queimo os objetos e me rendo aos ratos.